sexta-feira, 2 de maio de 2014

Moi non Plus

Ela estava quieta com seu notebook na mão, entregue ao tédio, quando chegou aquela notificação do Gmail. Novo arquivo no dropbox. Naquele email de disparo, uma mensagem dele, aquele ex-produtor musical decadente, entregue ao cigarro, ao álcool, ao pó, ao café, às partituras, às suas poesias nunca publicadas e letras nunca interpretadas pela voz feminina que ele queria treinar.

A voz feminina era a dela. Ele a descobriu aos poucos, a partir primeira noite que eles passaram juntos. Aquela noite (e algumas depois) ela não acreditava estar com aquele homem que parecia materializar todos os clichês do seu homem idealizado: o cara mal encarado, com jeito de mal humorado, barbudo, magrelo, cabelos desgrenhados e incrivelmente macios, a barba farta, as mãos grandes, certeiras, o rosto fino com traços fortes e um tanto caricatos envoltos em fumaça de cigarro. Ele era aquele ex-caso, talvez namoro, aquela ex-paixão intensa, quiçá a mais arrebatadora. 

"Olha o que eu achei. Eu podia ter te ensinado a cantar. Podia ter te produzido. Me liga."

Ele parecia não lembrar que ela não quisera que ele a ensinasse a cantar, muito menos ser quisera mais uma artista da sua carteira. Gostava demais dele. O suficiente para saber que o perfeccionismo obsessivo que ele dispensava ao seu trabalho mataria o romance. E foi o que aconteceu, mesmo sem que ela tivesse virado cantora criada por ele, mesmo sem aulas de canto, mesmo sem aprender a tocar Bach, mesmo sem que ela tivesse oficialmente mudado para a casa dele. Aconteceu porque ele passou a se considerar um "proto-marido", mesmo que ela o ouvisse em conversas que ele considerava sessões de terapia, mesmo que ela o tivesse salvado de duas tentativas de suicídio, mesmo que dormisse poucos dias da semana na casa dele, que ela ouvisse sempre dos amigos dele que há muito não o viam tão leve e que tenha levado na esportiva todas as indiretas a respeito de sua idade das amigas dele: ela tinha só 23 e ele 39.

Mas e aqueles arquivos no dropbox dela? Eram dois MP3. Eles o gravaram num dia em que chegaram bêbados de um show de jazz. Ela enlouquecida por ele, parecia querer devorá-lo com beijos. Ele a largou e sentou ao piano.

"Você nunca me viu tocar, né?"
"Não! Toca!"
"Vai na cozinha e pega whisky pra mim. Sem gelo. Quer que eu toque o que?"
"Não sei... o que cê quiser"

Quando ela chgou na cozinha, ele já tocava Bach, a sonata em B menor, com o cigarro que acendera antes que ela saísse da sala no canto da boca. Ao voltar e entregar o copo de whisky, ela o viu segurar copo e cigarro na mesma mão, tomar tudo com um só gole, voltar o cigarro para a boca e continuar tocando. Não se conteve e riu ao levantar a voz para dizer: "Caralho! Cê parece Serge Gainsbourg tocando!". Ele dedilhou a introdução da Le poinçonneur des lilas e disse que ela era, neste caso, a Jane B dele: uma menininha linda, atrevida, voluptuosa, com aquela voz  gostosa, sussurrada sempre ao pé do seu ouvido. E entre whiskys e cigarros, ela não lembra bem como, gravaram duas músicas: La Decadense e Je t'aime moi non plus. Eram os dois arquivos que recebera via dropbox. 

O ímpeto de ligar para ele era forte. A vontade de beijá-lo e passar mais uma noite com ele também. Então ela não hesitou: pegou um vinho na cozinha, abriu, bebeu um gole generoso da garrafa mesmo, acendeu um cigarro, deu um trago e mandou um whatsapp para uma amiga: "Dani, vamos no cinema, tomar uma cerveja, ou fazer qualquer coisa que vc queira? Chama teu namorado e toda a galera que quiser. Agora! Mon Serge na área. Melhor evitar o PELIGRO". 

domingo, 6 de abril de 2014

Mendigo do Amor

Sete horas da manhã. A caminho do trabalho, ela é abordada pelo mendigo sentado na calçada de uma avenida cartão postal da cidade. Ele se preparava para mais um dia de trabalho (a mendicância, no caso) com um sorriso que não se vê no rosto de nenhum engravatado, ou mesmo de ninguém com vestes mais casuais nos ônibus, carros, metrôs, motos, etc.

- Oi, menina! É você mesma?!
- Oi! Sou eu sim! Como o senhor tá?
- Tô bem, graças a deus! Correndo pra trabalhar?
- Pois é, né? Tô.
- Eu também... hahaha... Por aqui mesmo. Trabalho de casa.
- Aí eu vi vantagem...
- Menina, cê é a namorada nova do Jards, é?
- Namorada nova?! Pô, cara, eu nem sabia que ele tinha terminado com a antiga... Mas em todo caso, eu não sou, não.
- Ah, se ele ainda não terminou com essa mulher dele, devia terminar e te pegar logo.
- Hahahaha... Porra, como assim?! Deixa ele com a mulher dele!
- Olha aí! Mulher bonita, gente fina, sem frescura... Pelo tanto de óculos diferente que cê anda por aí, deve ser artista ou intelectual que nem ele, né?
- Ih, sou nada... E só tenho três óculos.
- Te acho melhor que a namorada que ele tá agora.
- Mas, vem cá, cê conhece a namorada dele pra falar isso?
- Não.
- Então! Se eles tão juntos, ela deve ser bacana, né?
- Mas tu gosta dele, que dá pra ver...
- Gosto sim. Muito. É um amigo bem querido.
- Ih... tá se fazendo de burra, mas tá vermelha... Cês já devem até ter se pegado.
- Não! Pára com isso, pô! Não quero ficar com o Jards, não.
- Por que, ué?
- Porque eu não tenho tempo pra nada. Nem pra ter mais uma coisa no que pensar. Aliás... vou correr lá porque eu não trabalho em casa como o senhor, né? Tchau, até mais.
- Vai com deus, fia.
- O senhor também.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Vida no Campo



"Quem aquela psicóloga acha que é pra jogar verdades tão bem escondidas na minha cara?! Sim, eu como quilos de doces apesar de ter sempre as taxas de açúcar bem acima do saudável no sangue. E daí?! Também sempre arrumo novos amigos que não me dizem nada de novo e me irritam com o passar do tempo. E realmente é verdade que, no quesito amoroso eu sou o que se pode chamar de Miss Rivotril. E daí?! Aliás, odeio esse termo "amoroso" por que decerto não existe amor em grandes, pequenas ou médias cidades. Muito menos em comunidades isoladas em florestas, desertos, praias, ilhas ou o raio de civilização que o parta! Mas voltando ao raciocínio anterior, também é fato que eu me coloco em situações de risco, seja quanto a minha integridade física, mental ou profissional. Sistemática e compulsivamente. Por isso que eu me endividei comprando uma Harley (que não posso pagar) enquanto trabalho com algo que eu sei: já já vai me dar o costumeiro tédio que me fará largar tudo e procurar algo diferente, pro ciclo recomeçar. Sim: é tudo fuga. Claro que é. Mas é a minha maneira de, cinicamente, esperar meu momento de epifania, quando eu finalmente hei de descobrir o que quero da vida."


"Je n'ai besoin de personne
En Harley Davidson
Je ne reconnais plus personne
En Harley Davidson
Je vais à plus de cent
Et je me sens à feu et à sang
Que m'importe de mourir
En Harley Davidson"

"Ah, como eu queria ser linda como a Bardot..."


"Cara, como a vovó mora longe! E o caminho continua deserto. Aliás, até os buracos continuam no mesmo lugar (só que maiores), nessa porra de estrada. Bom... a vantagem é que dá pra dirigir sem capacete e com fone no ouvido. E se vier um lobo, eu atropelo. Fodam-se os baderneiros protetores de animais! Eu tenho uma Harley Davidson, afinal."

"Gente! Mas o que essa porta faz aberta?! A vó esquece a porta aberta, aí os bichos da floresta entram e destroem tudo. Velho, quero ver se ela esquecer de de carregar o rifle algum dia... Pior são os lobos! Algo como aquela história sem nexo da tataravó pode acontecer. Fico pensando: ninguém, nenhuma criança, nunca estranhou o fato do lobo não ter mordido a tata e a avó dela? Nem ter digerido? E principalmente: como é possível existir possibilidade de sobrevivência dentro do que seria o intestino de um animal bem menor que as duas?! Claro que a história não é essa, mas os tios da tata que a escreveram insistiram em contar assim. Ou meio que assim. Não sei ao certo. Essas tradições orais são interessantes... Eu devia ter me especializado e tentar viver do estudo dessas coisas..."

"Ah vá!! A porta foi arrombada?! Jura?! E saquearam a adega?! Poxa, sumiram com aqueles vinhos espetaculares, os whiskis... e os licores da vovó?! Sumiram todos! Meldeeels!! Levaram as compotas!! Aliás, não tem comida! E todas as esculturas e cestas de palha também sumiram! COMO ASSIM?! Rolou um assalto a uma casa perdida no meio da floresta! Que muito surreal! Ah, que vontade de falar, gritar, urrar, fazer uma cara feia dessas de quem tá espumando de raiva... Mas pra que, né?! Afinal de contas, se nem a vovó tá aqui, quem estaria? Isso aqui é a terra do esquecimento e da solidão... Bom, ela deve ter ido dar queixa na delegacia da cidade. Acho que, mais tarde, vou lá procurar notícias".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Rosa, o checklist

Trampo, trânsito, cidade, sono, torpor. 
Lembranças no bolso da saia. 
TPM, jazz, cervejas, cigarros, sono, calor. 
Noite, bar, barba, rua, carros, banho, vapor. 
Lembranças no solado da sandália.
SMS, ligações, conversas, mesmos problemas, mesmas soluções, dor de dente.
Pena, rosa, saudade, sexo, voz, samba, cigarro.
Um livro, um café, um chiclete, o vermelho do carro.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Cantando em Serviço



Chico canta: Como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta? Mesmo calada a boca, resta o peito...

Caetano rebate: Você não está entendendo quase nada do que eu digo. Eu quero ir-me embora! Eu quero é dar o fora!

Chico continua: Todo dia eu só penso em poder parar. Meio-dia eu só penso em dizer “não”. Depois penso na vida prá levar e me calo com a boca de feijão...

Kátia lamenta: Não está sendo fácil viver assim...

Jamil surta, levanta-se e abandona o trabalho: Chau! I have to go now...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A vida secreta softwares de edição de texto

Tudo corria tranquilamente na pasta de caracteres de um software de edição de textos. Fim de sexta-feira: os processadores já estavam relaxando. Mas apesar desse contexto, a senhora Helvetica estava preocupada. Ela aborda uma jovem fonte que acabava de ser salva naquele diretório e a convida para um café:

Helvetica: Tem um assunto me afligindo... posse te perguntar uma coisa?

Nova fonte: Claro...

Helvetica: Você tem namorado?

Nova fonte: Tenho.
(Hein?!)

Helvetica: Ha quanto tempo vocês estão juntos?
(Melhor comer pelas beiradas. Vai que eu assusto a menina...)

Nova fonte: Hmmm... bastante. Uns 2 anos e meio.
(Onde ela quer chegar com isso, gente?)

Helvetica: E você vai muito na casa dele?

Nova fonte: Vou, ué...
(Que papo estranho! Medo!)

Helvetica: Isso que eu queria entender: por que você vai lá?

Nova fonte: Porque é perto de casa. É caminho pra casa na volta do trabalho, por exemplo. Se fosse longe, eu pediria pra ele ir lá em casa. 
(Eu, hein...)

Helvetica: Ai, é porque a Verdana...

Nova fonte: QUEM?!

Helvetica: A Verdana, minha filha que tem a tua idade...

Nova fonte: Ah tá. Verdana, claro... Que nome... bonito.
(Mas que porra de nome é esse?!)

Helvetica: Minha filha atravessa a cidade todo dia, debaixo de chuva e trânsito pra ir na casa do namorado. Perguntei pra ela por que e sabe o que ela disse?! Que era porque lá ela tinha mais liberdade para transar com o namorado. 

Nova fonte: Poxa vida...
(Que assunto constrangedor! Não acredito que eu estou ouvindo isso! Tem que passar alguém por aqui pra cortar o assunto. Passa, por favor... Fezes! Não vai passar ninguém, pô?!) 

Helvetica: Não entendo por que ela falou isso. Eu sei que os jovens de hoje em dia transam cedo e tudo, mas eu não entendo...

Nova fonte: Hmmm...
(A menina já falou que transa com o cara, e que vai lá por que se sente mais a vontade. Ok. O que mais essa senhora precisa entender?!?! E outra: 24 anos é "cedo"?! Ui!)

Helvetica: Por que ela precisa ir tão longe? Por que ela não chama ele pra ir em casa? Eu não me sentiria muito bem, mas ela pode ficar com o namorado, por exemplo, quando eu for sair com meu marido, né? Não entendo por que ela não se sente a vontade em casa! Por que? Me fala fala, você que tem a idade dela!

Nova fonte: Ah... sei lá... cada um tem um tipo diferente de relação com os pais e com namorados, né? Tipo... evangélicos, judeus e islâmicos mais ortodoxos e até católicos tipo os da TFP, por exemplo, transam só depois do casamento...
(Sei lá, pô! A casa é tua! Coitada da Verdana, gente! 
Ai, tia! Libera o Word pra menina! Só diz pra ela instalar o anti-vírus e o corretor ortográfico. Também aconselhe a moça a não salvar nada)

Helvetica (irritada): Ah, mas você já viu que não é o caso, né?! Por exemplo: você transa com seu namorado?
(Essa menina quer me enrolar!)

Nova fonte: HÃ?!?!?!?!?! Hmmm... é... eu... Hã?! O que foi mesmo que a senhora perguntou?
(Como assim?!?!?! Ela não tá me perguntando isso! 
Ah! Ouço passos! Graças a Deus! Chega logo, seja lá quem for! Esse papo tá tomando um rumo cada vez mais constrangedor!)

Salva pelo gongo! O salvador da pátria, sr. Times New Roman, chegou na sala do café e começou a falar de trabalho. 


domingo, 30 de maio de 2010

Notícia que não sairia no jornal

Sete horas. Toda manhã de dia útil, Maria Qualquer estava lá no viaduto da rua Pedroso, na calçada oposta à do albergue de mendigos. Ela olhava a 23 de Maio engarrafada. Toda manhã. Sempre no mesmo horário, sempre com o mesmo olhar, sempre do mesmo ponto, sempre na mesma posição.

Uma manhã qualquer, as sete da manhã, Maria espreitava, como sempre,  a 23 de Maio congestionada. Do mesmo ponto do viaduto da Rua Pedroso, mas em posição diferente: sentada na grade, pernas balançando em direção à avenida lá em baixo e os "olhos embotados de cimento e lágrima". Transeuntes paravam, olhavam e não diziam nada. Apenas um par de moças comentou:

"Que horror! Acho que ela vai pular. Eu ajudaria, mas não dá por que senão me atraso para o trabalho".

E todos os que estavam parados ouviram. Alguns olharam para o relógio, outros só saíram. E tudo correu normalmente durante o horário de rush no metrô São Joaquim, no ponto de ônibus, nas lojas, no McDonnald's e - quiçá - nos hospitais da região.

E o trânsito na 23 de Maio? Continuou carregado. Mas ninguém soube ao certo se Maria Qualquer chegou a cair na contramão atrapalhando o tráfego. Tem coisa que não sai no jornal. O fato é que ela nunca mais apareceu por lá.